Muito mal se fala, e sempre se tem falado, do famoso “jeitinho brasileiro”. Mas enquanto não se der um jeito de verdade na situação nacional, com relação às agruras do povo, o jeitinho será sempre bem vindo, como sinônimo de valiosa malandragem, num sentido bem brasileiro, porque vinculado às nossas raízes aborígenas (negras e indígenas).
Jeito de verdade seria, pelo menos, reduzir a pobreza. Não precisaria nem acabar com ela, de uma vez por todas. Isso, a China, civilização com cinco mil anos, está tentando há algumas décadas, e ainda não conseguiu. Evidentemente, pode ser que chegue lá. Mas o Brasil… Bem, daí o caso é muito mais complicado.
Tanto que, tendo cinco, seis, sete vezes menos habitantes que a China ou a Índia, mas possuindo um território tão rico e extenso quanto, continuamos campeões em miséria, ignorância e violência.
Ou, pior do que isso: sempre que se tenta diminuir a miséria, uma força bem difícil de ser controlada se manifesta e joga tudo por terra.
O atual momento histórico ilustra bem tal problema, escancarando sua fonte geradora, que se encontra para além da simples divisão de classes, entre empresários e trabalhadores.
O momento, com o avanço do neonazismo, reflete razões mais complexas, porque mais profundas, dizendo respeito à nossa cultura governada pelo mito da mistura de raças, do qual o “jeitinho brasileiro” é uma de suas muitas manifestações.
Os movimentos de corpo do ser humano brasileiro, suas expressões faciais, sua fala, sua voz, tudo isso e muito mais, têm por raiz o nada fácil destino escravo e violentado de nossa nação.
Em outras palavras, nossa cultura emerge do holocausto que se renova, constantemente, a cada movimento que desde sempre experimentamos de adiar a felicidade do povo.
Pois, sempre que se ensaia algo libertador, uma nada mansa revelação emerge do fundo de nossa relação com o inconsciente coletivo humano, forjando o genocídio estrutural em que se encontra a nação, com suas formas terríveis de variados tipos, como golpes de estado, ditaduras e violência policial.
No entanto, é justamente esse destino trágico que nos avia a receita de uma solução solidamente eficiente para nossas carências – a identidade cultural brasileira, contexto dentro do qual surge o “jeitinho”, cômputo civilizacional de todas as nossas incompetências estruturais resolvidas com boas doses de conhecimento sagrado das etnias escravizadas.
Essas etnias são especialmente criativas, pois, orientadas pela vinculação com a fertilidade da natureza, possuem com ela uma relação muito mais de pertencimento do que de apropriação. Negros e indígenas são beneficiados culturalmente pelo amor materno que domina a reação violenta perante a violência.
O que sua raiz produz são características encantadas, como a pureza, a paciência, a alegria, a bondade, a criatividade artística, que se impregnam na cultura popular através uma rica e extensa mitologia.
Com a economia digital, pix pra lá, pix pra cá, vendas, bicos e biscates por facebook, instragram e whatsapp, a composição brasileira, ligada à favela, de remédios para os problemas econômicos do dia a dia, certamente vai ser beneficiada, pois o jeitinho tem a ver com uma espécie de princípio de aproveitamento máximo dos recursos disponíveis, o que sem dúvida é favorecido pelo mundo virtual.
Diferente de um sentimento derrotista ou fatalista frente ao destino de nação escravizada pelo capitalismo global, a brasilidade propõe a resistência criativa, ela mesma geradora de simbologias que nos identificam, como a favela amorosa das mães de santo – uma espécie de berço natural de ideologias sobretudo alegres, que fundam práticas culturais como o futebol arte e o carnaval.
Os praticantes da pintura naif, estilo aliado de primeira hora da canção nativa de civilidade nacional brasileira, muito comumente concebem a beleza do povo como jovem, juvenil, fonte de inúmeros recursos para nos entendermos belos. Por isso, pintam a favela, ou as comunidades do recôndito sertanejo, com pinceladas barrocas, plenas de desejo por alianças com a multiplicidade de vida existente nesses lugares. Porque é neles, quando vistos e representados com olhos artísticos, que habita o gérmen da cultura nacional.
Em termos concretos, de ligação mais clara com a realidade cruel da pobreza, da fome e da violência, essas pinturas querem dizer que nosso caminho obrigatoriamente passa pela imaginação, como forma de suprir a ausência do Estado. São como rosas brotadas do coração do povo, por inspiração mais ou menos direta de sua ancestralidade mítica, fortaleza que enobrece nossa mistura étnica.
O naif, assim, é outra forma de ilustrar o que se chama de “jeitinho brasileiro”. Ao fundo, tanto o naif como a mitologia do jeitinho expressam uma aura anterior, que, de outros modos ainda, determina nossa arcabouço artístico-cultural, forjando, como que com a força dos metais de mitos guerreiros, a vitória de nosso povo por sobre todas suas inúmeras dificuldades.
Que os novos ventos da civilização mundial, soprados por sobre o país desde o início deste século, consigam ser enfrentados por essa determinação corajosa e iluminada.
Outros jeitos daremos, sem dúvidas, a partir das regiões inconscientes que nos regem com humana determinação. Novas luzes surgirão, para que a brasilidade se reconstrua e o mundo inteiro se sinta novamente maravilhado diante do nascimento da paz e da alegria em um contexto tão marcado pela dor da escravidão.
Marcus Minuzzi, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação