“Legendários”: o espetáculo da masculinidade cristã chega a Anápolis entre polêmicas e promessas de redenção

Movimento evangélico volta a Goiás com retiro masculino de alto custo, exigência física extrema e discurso moralista que ignora impactos ambientais e sociais

OPINIÃO – O movimento cristão “Legendários” vem ganhando força no Brasil e em países da América Latina com a promessa de restaurar a identidade masculina por meio de fé, sofrimento físico e uma proposta radical de reconexão espiritual. A nova edição do evento, intitulada TOP — Track Outdoor de Potencial, será realizada entre os dias 26 e 29 de junho, em Anápolis (GO), e tem como proposta uma imersão de quatro dias em meio à natureza, longe da civilização e do uso de tecnologias.

 Exclusivo para homens entre 16 e 65 anos, o retiro exige preparo físico, exames médicos obrigatórios para participantes acima de 40 anos ou com sobrepeso, e cobra valores altos de inscrição. O encerramento oficial ocorrerá em um jantar de formatura no dia 30 de junho, em local ainda não divulgado.

Segundo seus idealizadores, o objetivo é  “despertar a identidade que Deus deu ao homem no nascimento” e ativar capacidades para que cada um cumpra seu destino. A proposta, que combina atividades extenuantes com pregações evangélicas, afirma que a transformação vem por meio da dor, do silêncio e da superação.

Durante o evento, os participantes são desafiados a subir montanhas, carregar mochilas pesadas, dormir em barracas e enfrentar condições adversas como parte de uma jornada simbólica de reconexão espiritual. Ao final, os homens recebem o título de “Legendários” e são incentivados a voltarem para suas famílias e comunidades como líderes espirituais e morais.

Apesar da aparência de religiosidade e autoconhecimento, o movimento tem despertado críticas por sua estrutura excludente, por promover uma visão conservadora e restritiva da masculinidade, e por ignorar as consequências ambientais e sociais de suas ações.

Em edições anteriores, como a realizada no Parque Estadual dos Pireneus, em Pirenópolis (GO), conhecido como Cidade de Pedra, o movimento foi denunciado por degradação ambiental e invasão de áreas de preservação. A presidente do Instituto Santa Dica e integrante do Observatório de Políticas Socioambientais de Goiás, Lucília Amaral, alertou para o caráter exploratório da ação:

“Eles comercializam espiritualidade com um tipo de turismo predatório. Deixaram marcas visíveis nas trilhas e há diversas irregularidades sendo apuradas pelo Ministério Público. O discurso de preservação não se sustenta”, declarou.

Em Minas Gerais, uma travessia realizada pelos Legendários no Parque Estadual da Serra do Ouro Branco foi feita sem licenciamento ambiental, o que resultou em acúmulo de lixo e danos a uma trilha protegida. A prática se repete em diversas regiões: os organizadores prometem deixar os locais “melhores do que encontraram”, mas deixam um rastro de sujeira e descaso.

A questão da segurança também se tornou uma preocupação central após a morte do participante Fábio Adriano Machado Cherini, de 44 anos, durante uma trilha em Mato Grosso do Sul. A causa do óbito ainda está sendo investigada, mas o episódio acendeu um alerta sobre a ausência de supervisão técnica em atividades fisicamente exigentes, com alto risco cardiovascular. Mesmo com exames obrigatórios, a estrutura improvisada e a pressão psicológica sobre os participantes podem representar sérios riscos.

O discurso motivacional do movimento, reforçado por vídeos emocionais nas redes sociais, insiste na ideia de que o sofrimento é um caminho legítimo para o encontro com Deus. “Vai doer? Vai. Vai sofrer? Vai. Mas é Deus te moldando”, dizem os vídeos promocionais, geralmente com trilhas sonoras dramáticas e homens chorando sob a chuva. Esse apelo estético e emocional, porém, mascara um projeto mais complexo: a venda de uma masculinidade idealizada, autoritária e hierárquica, construída sob os pilares da performance física, da obediência cega e da repressão emocional.

Além disso, o movimento tem sido alvo de críticas por sua postura moralista e contraditória. O caso do pai do jogador Neymar ilustra bem esse paradoxo. Após participar do retiro e fazer publicamente a defesa de valores cristãos como “pureza” e “responsabilidade familiar”, foi flagrado em festas com mulheres em situação de prostituição. Relatos semelhantes apontam que muitos homens, após participarem do evento e serem aclamados como “restaurados”, retornam às suas casas e retomam comportamentos abusivos, traições e posturas tóxicas. A diferença? Agora se sentem legitimados por um “certificado de transformação”.

Imagem homens ao redor de uma grande fogueira, alguns estão ajoelhados e outros de pé
Encontro do movimento Legendários (Foto: Reprodução)

Embora o grupo afirme não seguir uma denominação religiosa específica, há forte influência evangélica nas falas, músicas e atividades. Jesus é chamado de “o primeiro Legendário”, e os participantes são incentivados a frequentarem igrejas aos domingos. Essa aproximação informal com o cristianismo conservador também se reflete no apoio ideológico a pautas da extrema direita latino-americana, com ênfase em valores como submissão feminina, autoridade paterna e combate a pautas de diversidade sexual e de gênero.

A exclusão das mulheres do processo de formação também é marcante. Durante os dias do retiro, companheiras, esposas ou namoradas são mantidas em grupos de WhatsApp à parte, e apenas aquelas que preencherem um formulário específico poderão participar de um encontro paralelo, batizado de “Futuras Esposas dos Legendários”. A simbologia deixa claro que a mulher não é parte ativa da transformação, mas apenas o “prêmio” ou “apoio” daquele que se torna homem de verdade.

Diante desse cenário, cresce a dúvida: por que, afinal, é necessário subir montanhas, carregar mochilas de 14 quilos e pagar uma pequena fortuna para se tornar uma pessoa melhor? O que o movimento oferece não é uma transformação interior espontânea, mas sim um pacote fechado de masculinidade restaurada, fé customizada e superação encenada um produto pronto para consumo de uma audiência em busca de sentido, mas vulnerável ao apelo do heroísmo religioso.

É preciso reconhecer que há espaço legítimo para espiritualidade, jornadas de autoconhecimento e apoio entre homens. Contudo, essas experiências precisam ser inclusivas, sustentáveis, seguras e coerentes com os valores que proclamam. O que se vê nos Legendários, até aqui, é um modelo de transformação disfarçado de fé, mas ancorado no marketing emocional, em práticas ambientalmente irresponsáveis e numa estrutura que reforça exatamente aquilo que diz combater: a fragilidade masculina.

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