Antiga Casa da Criança é reinventada para acolher quem trata o câncer em Anápolis

Uma história pessoal e a oportunidade certa motivaram uma fisioterapeuta a construir um local de acolhimento para quem vem de outras cidades em busca do tratamento oncológico, mas não tem onde ficar

Trinta anos atrás, quem passava pela rua Dr. Alfredo Fleury, no Bairro Jardim Alexandrina, em Anápolis, se deparava com muros brancos, um portão de grade e a placa amarela que dizia “Casa da Criança Anápolis”, aspectos que indicavam um lugar cheio de histórias prontas para receberem novos capítulos. Algumas décadas depois, quem passa pelo antigo prédio filantrópico se depara com uma estrutura em reforma.

O local está sendo reinventado e preparado para receber novas trajetórias, desta vez acolhendo pacientes oncológicos que vão até a cidade em busca de um tratamento e de esperança. Esse novo capítulo, quase pronto para receber as histórias de diversas famílias, se chama Casa de Acolhimento Amor de Felipe.

Todos os anos, o setor oncológico especializado da Santa Casa de Misericórdia de Anápolis realiza 12 mil consultas e 1.300 internações, além de ofertar mais de 12 mil doses de quimioterapia – todas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Só em setembro de 2024, a Unidade Oncológica de Anápolis (UOA) – braço importante da Associação de Combate ao Câncer de Goiás – recebeu 1.313 pacientes – uma média de 66 por dia.

Diante disso, conforme a cidade se estabelece no sistema oncológico de Goiás, a demanda cresce e passa a receber pacientes de outros Estados da federação. Dos 6.088 pacientes atendidos pela UOA de janeiro a setembro de 2024, 31 vieram de outros locais do país, especialmente do Distrito Federal (8) e do Tocantins (5). Outros 11 estados também integram a lista.

Daisy Lima é assistente social na Santa Casa, responsável pela triagem inicial de quem será encaminhado à Casa de Acolhimento, e conta: “O município não oferece espaço para quem vem fazer tratamento [de saúde]. Hoje nós atendemos Porangatu, Uruaçu, Goianésia, Jaraguá, Luziânia… Vem gente do Estado inteiro”. Daisy explica que o encaminhamento acontece por dois motivos principais: ou a cidade de origem tem uma estrutura com atendimento unicamente primário (que só consegue atender problemas mais simples), ou não possui vagas disponíveis no sistema municipal.

Foram situações assim que inspiraram Dolores Diniz, fisioterapeuta na Santa Casa, a idealizar a Casa de Acolhimento Amor de Felipe (CAAF). “Eu vi que havia muitas pessoas que dormiam no carro porque não tinham para onde ir, e achei uma boa ideia fazer uma casa de acolhimento para essas pessoas que vinham de outras cidades acompanhar familiares que estavam na UTI ou internados no hospital”. O prédio que hoje recebe a reforma é um legado do avô e do pai de Dolores, que cuidavam da Casa da Criança. Com o fechamento da antiga instituição, e devido ao título de filantropia, o espaço deveria acolher uma outra causa ou ser doado para outra fundação. Foi quando surgiu a oportunidade de colocar em prática a ideia de acolhimento.

HISTÓRIA PESSOAL

Já a motivação para atender pacientes oncológicos veio de uma história pessoal: “Meu filho teve leucemia com 17 anos. Eu achava que a minha vida era perfeita, até que o Felipe adoeceu”. “Ele passou por muita coisa, e aqui [em Anápolis] não havia tratamento para a doença dele. Então eu me vi desse jeito, de ir para outra cidade sem ter lugar para ficar, desesperada”, conta Dolores.

Luiz Felipe foi diagnosticado com linfoma linfoblástico de célula C em 2018. Realizou meses de tratamento, conseguiu um doador de medula óssea, fez o transplante em Brasília e voltou para Anápolis. Seu sonho era passar em Medicina – sonho que ele conquistou após fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ainda internado, em fase de quimioterapia. Felipe foi aprovado para o curso de Medicina na Universidade Federal de Jataí, onde realizou a inscrição, mas não teve chance de cursar, pois foi a óbito em dezembro de 2018.

O nome da Casa que busca acolher psicológica e emocionalmente pacientes que estejam passando pela mesma luta que Luiz Felipe enfrentou, e seus familiares, é em homenagem à pessoa que ele foi. Além do jovem, algumas outras pessoas que passaram pela vida daqueles que participam do projeto também são homenageadas no espaço: “marcaram a vida enquanto estavam aqui na Terra”.

ACOLHIMENTO

O espaço conta, por enquanto, com cinco quartos. Cada um deles pode acomodar até três pessoas, com uma estrutura completa: fogão, frigobar, televisão, camas e colchões. Quatro deles também possuem banheiro com chuveiro. A expectativa é de que haja grande rotatividade de pessoas no local. Cada família pode ficar até dois meses ininterruptos na casa, mas Daisy conta que a previsão é de que fiquem menos, porque o usual é que, nos casos em que um paciente fique tanto tempo assim na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com um quadro clínico similar, o boletim médico seja passado à família por telefone, já que os familiares “têm uma vida lá fora” e precisam, por exemplo, trabalhar. 

A assistente social explica: “às vezes tem um paciente que precisa de cuidados mais intensos, aí vêm duas pessoas. O que a gente orienta normalmente é que um fique no hospital e o outro, descansando, para irem revezando. Aí precisa desse lugar [de acolhimento]”.

Outra situação que pode acontecer é o próprio paciente precisar desse apoio, ressalta Dolores. A fisioterapeuta exemplifica: “tem gente que vem [pensando] ‘vou fazer uma quimioterapia na sexta-feira e tenho uma consulta na segunda-feira’. Mas não tem condições de pagar condução para ir à cidade dela e depois voltar para cá para ser atendido na segunda. Ela não pode cogitar não voltar para a consulta, não tem condição de pagar um hotel. Para onde ela vai?”. “E ela nunca está sozinha, porque a família inteira adoece”, destaca ainda.

Além de contar com uma recepção, a casa também possui espaços de descanso e de reflexão, e três consultórios que serão locados para uma equipe multidisciplinar de saúde. Com isso, os pacientes e familiares que forem acolhidos ali também terão apoio psicológico, de forma semanal e gratuita.

Dolores entende essa necessidade e traz como principal objetivo oferecer um ambiente confortável e verdadeiramente acolhedor: “quero que as pessoas tenham a segurança de estar lá dentro e que consigam esquecer, pelo menos por um tempo, a doença e tudo de ruim pelo que estão passando”, afirma. Daisy complementa: “Se essa família está muito angustiada e vai para um lugar que também é ruim, acaba piorando em vez de ajudar”.

INAUGURAÇÃO

Em Anápolis, apenas duas outras casas de acolhimento para pacientes oncológicos estão disponíveis, mas a CAAF consegue se diferenciar de ambas. “Uma só recebe pacientes de câncer, e de segunda a sexta-feira. Ela atende mais o pessoal da Unidade Oncológica. A outra não recebe pacientes, só a família – e só mulheres”, conta Daisy, que será uma das principais profissionais a realizar a triagem de famílias para a Casa.

Inicialmente, o espaço deve atender à demanda da Santa Casa de Misericórdia, acolhendo acompanhantes que, muitas vezes, chegam durante a noite e dormem na recepção, sem ter para onde ir. Como a previsão é de que a rotatividade seja grande, a expectativa da assistente social é de que a triagem também seja realizada por outros hospitais filantrópicos parceiros, como o Hospital de Urgências.

A Casa de Acolhimento Amor de Felipe tem inauguração marcada para o dia 29 de novembro de 2024, data em que Felipe completaria 23 anos. O funcionamento efetivo é a partir de janeiro de 2025, e a triagem deve acontecer assim que a casa estiver atendendo, conforme surgirem as demandas.

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